Minha cabeça estremece com todo o esquecimento
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
- Era uma casa - como direi? - absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.
Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.
Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
Herberto Helder
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A CATEDRAL
Aos amigos surrealistas
A catedral é um lençol de paz na tarde calma.
...Pelos veios das pedras, os rios entram pela terra,
atracam ao centro da rua. As tabernas iluminam-se.
O aroma do rum embebeda toda a praça. Gargalhadas.
Debaixo do grande carvalho, moscas cambaleantes,
Velhos que lêem jornais do antigo Egipto.
A terra acorda. No bico das aves brilha a foice do canavial.
Crianças de pé descalço reinventam o mundo,
ainda puro. Ó rumores de fontes! O leme é uma faca de
ponta e mola, a praia uma mãe de água nocturna.
Noutros tempos existiu ali uma clarabóia,
era com ela que as mulheres sondavam o mar.
De súbito, os sinos tocam. O tempo da hibernação
despe a couraça do musgo. A torneira do mar
volta a correr. Sua barbatana é vermelha e viscosa.
A firme rotação do farol. A elipse lunar.
Nos cascos dos animais fermenta a válvula do sonho.
O mar canta nas conchas, ao lado do peixe arcaico.
Luís Costa
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És o poema
és o poema e a aurora
que esboça no corpo um discurso húmido de cânticos nocturnos
és o poema e a fissura dos meus olhos
donde derramo a tinta com que escrevo teu nome
és o poema que perdura cardíaco
entre labaredas e jardins proibidos das geografias internas
és o poema e o consolo duma boca
que beija no ventre uma borboleta em chamas
és o poema e a navegadora sem tempo
no meu peito de pétalas secretas
és o poema e a intimidade de uma lágrima
onde sal nocturno segrega a espuma do sonho
és o poema de todos os poemas até à bruma no horizonte
Miguel de Carvalho
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A memória do nome
Esmaga em prensas de laje os golfos do nome
dir-se-ia um nome de larva ou sílaba azeitada
e o corpo está enrijado como Jesus a prumo
ser imponderável revestido de folhas brancas,
sob o arco da língua retesada os cascos surdos
esta boca imunda em lava aberta esta tribo
e o fogo nas mãos como soldas no centro do ar
o ritmo asfixiante do verbo o hálito sangrento,
toda a cegueira da sombra das liras espiando
ó bem amado nome diluído na refracção do eco.
João Rasteiro
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
- Era uma casa - como direi? - absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.
Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.
Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
Herberto Helder
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A CATEDRAL
Aos amigos surrealistas
A catedral é um lençol de paz na tarde calma.
...Pelos veios das pedras, os rios entram pela terra,
atracam ao centro da rua. As tabernas iluminam-se.
O aroma do rum embebeda toda a praça. Gargalhadas.
Debaixo do grande carvalho, moscas cambaleantes,
Velhos que lêem jornais do antigo Egipto.
A terra acorda. No bico das aves brilha a foice do canavial.
Crianças de pé descalço reinventam o mundo,
ainda puro. Ó rumores de fontes! O leme é uma faca de
ponta e mola, a praia uma mãe de água nocturna.
Noutros tempos existiu ali uma clarabóia,
era com ela que as mulheres sondavam o mar.
De súbito, os sinos tocam. O tempo da hibernação
despe a couraça do musgo. A torneira do mar
volta a correr. Sua barbatana é vermelha e viscosa.
A firme rotação do farol. A elipse lunar.
Nos cascos dos animais fermenta a válvula do sonho.
O mar canta nas conchas, ao lado do peixe arcaico.
Luís Costa
+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
És o poema
és o poema e a aurora
que esboça no corpo um discurso húmido de cânticos nocturnos
és o poema e a fissura dos meus olhos
donde derramo a tinta com que escrevo teu nome
és o poema que perdura cardíaco
entre labaredas e jardins proibidos das geografias internas
és o poema e o consolo duma boca
que beija no ventre uma borboleta em chamas
és o poema e a navegadora sem tempo
no meu peito de pétalas secretas
és o poema e a intimidade de uma lágrima
onde sal nocturno segrega a espuma do sonho
és o poema de todos os poemas até à bruma no horizonte
Miguel de Carvalho
++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
A memória do nome
Esmaga em prensas de laje os golfos do nome
dir-se-ia um nome de larva ou sílaba azeitada
e o corpo está enrijado como Jesus a prumo
ser imponderável revestido de folhas brancas,
sob o arco da língua retesada os cascos surdos
esta boca imunda em lava aberta esta tribo
e o fogo nas mãos como soldas no centro do ar
o ritmo asfixiante do verbo o hálito sangrento,
toda a cegueira da sombra das liras espiando
ó bem amado nome diluído na refracção do eco.
João Rasteiro